Altos e baixos

Trem L da linha vermelha norte-sul de Chicago, que me fez pensar sobre solidariedade e individualismo (crédito: Chico Mattoso)

Faz umas boas semanas, talvez até alguns meses, que eu fiquei bem amiga de Chicago. Passei a adorar morar aqui, reconheço as pessoas do bairro, tenho vários lugares e programas favoritos e tal. Até rotina eu tenho! Tem dia que trabalho muito, tem dia que estudo muito, daí vejo os amigos, vou pra academia, estudo violino, cuido da casa, do casamento, de mim. Tenho me divertido, descansado, aprendido. Ótimo. Pra ser o mundo perfeito, ainda, esquentou! O verde explodiu em todos os lados, as árvores estão lindas, cheias, os passarinhos, animados, passam os dias — e infelizmente algumas madrugadas — cantarolando histericamente. Até praia eu provei que existe aqui. Tão confortável, tão a vontade, me sinto em casa. É como se fosse o Brasil.

Mas não é. São os EUA, por mais que às vezes não pareça.

Hoje, não pareceu por outro motivo. Voltando da aula à noite, sentada no banco do trem do lado da porta de saída do vagão, tentei ligar pro meu marido. Ele não atendeu. Resolvi checar meu email e fiquei por ali, brincando com o celular, igual a outras dez pessoas que estavam espalhadas pelos bancos do vagão cheio, mas não lotado. Um adolescente de uns 17 anos, alto, magro, bonitinho e meio mal vestido estava encostado em uma das barras de ferro de apoio à frente da porta. Eu não percebi, mas ele me olhava e, quando a porta abriu, tentou pegar meu celular. Chegou a conseguir, eu senti que soltei, mas, num impulso, puxei de volta com força, ele soltou, dei um golpe com o celular na minha própria barriga. O adolescente demorou uns 10 segundos pra entender o que tinha acontecido e, quando a ficha caiu, saltou do carro. Mas ficou ali, fora, olhando pra dentro. E eu, dentro, olhando pra fora. Com perplexidade, no primeiro momento. A porta fechou, o trem saiu. Olhei ao meu redor e um homem que sentava próximo a mim e lia um livro se movimentou como se estivesse incomodado. Eu interpretei seus movimentos como uma declaração de solidaridade. Será?

Minha aula de hoje teve três textos como pré-requisitos. Um deles falava do individualismo americano. Naquele trem, eu tive um dos melhores exemplos do que isso significa. Certamente as pessoas viram o que aconteceu, mas ninguém fez contato visual. O homem que se remexeu ao meu lado não respondeu ao meu apelo e enfiou os olhos cada vez mais dentro do seu próprio livro. Ninguém disse qualquer coisa, ninguém sequer desviou o olhar. Mas eu sei, tenho certeza, minutos antes, todo mundo viu.

O mais curioso é que depois de ler o texto e antes de entrar no trem, eu assisti ao filme “Pray the Devil back to Hell”, sobre o movimento pacifista liderado por mulheres religiosas, cristãs e mulçumanas, da Liberia. Foi, certamente, uma das histórias mais bonitas que eu vi na vida, o que me deixou menos constrangida por ter me emocionado a ponto de chorar em sala de aula. Cansadas dos crimes de guerra, estupros, violência, pobreza, elas se unem para pedir o fim da guerra. Começam com manifestações em um mercado público e no ápice do movimento chegam a uma cúpula africana com chefes-de-estado. Elas alcançam o objetivo e uma delas, Leyman Gobwee, recebeu o prêmio Nobel da Paz em 2008. Mas o filme, acima de tudo, é sobre solidariedade, de como as pessoas se unem pra se ajudar e alcançar um objetivo comum.

A minha maior surpresa em relação ao texto que li sobre a individualismo americano foi a minha própria conclusão de que no Brasil não somos tão diferentes. Ok, nós nos tocamos e somos mais expansivos, mas estamos bem preocupados com nossas vidas, nosso trabalho, nosso sucesso. A situação da Libéria dos anos 2000, em guerra intensa e atacada por rebeldes, é extrema e não pode ser tomada como base de comparação para o comportamento americano ou brasileiro. Mas como nós reagiríamos? Como nos portaríamos? Nos uniríamos?

Apesar desse sentimento de “abandono da coletividade” que senti hoje no trem, acho que os Estados Unidos, ou melhor, os americanos não são 100% individualistas. O trabalho voluntário, a filantropia, a disponibilidade aqui pode chocar quem não está acostumado a ver esse tipo de coisa — e eu, confesso, nunca estive.

Por que, então, fiquei tão chocada com a falta de reação das pessoas no trem?

Esta entrada foi publicada em maio 21, 2012 às 11:57 pm e está arquivada sob Ai esse comportamento!, Cinema, Neurose, Vida na América. Guarde o link permanente. Seguir quaisquer comentários aqui com o feed RSS para este post.

5 opiniões sobre “Altos e baixos

  1. Eu fiquei muito pouco tempo nos EUA para analisar o comporetamento deles. Mas senti solidariedade em NY por estar grávida e empurrando um carrinho de bebê. Muita gente se oferecia para carregar o carrinho no metrô, minhas malas no aeroporto e coisas assim. Chocada fiquei quando cheguei a Brasília, sozinha, com malas, carrinho, barrrtiga e criança e nin-guém me ajudou com as malas. Até que uma mulher parou tudo o que estava fazendo e foi lá me ajudar, mas ela também tinha suas muitas malas. Sei lá, isso me chocou demais, achei que o individualismo brasiliense era muito pior que o nova-yorkino…
    Já aqui, é cada um na sua, ninguém liga para o que vc veste ou faz, mas está todo mundo atento para ajudar a quem precisa, nestas pequenas coisas mesmo. Os velhinhos, crianças, os pedestres, ciclistas, os mais fracos têm realmente prioridade. O prefeito (aconteceu com uma amiga) ou qualquer pessoa que esteja no ônibus, prontamente te ajuda a descer com o carrinho, mesmo que o degrau seja mínimo. Eu sou constantemente ajudada por senhoras que podiam ser minhas bisavós, mas que não deixariam uma mãe baixar com o carrinho do ônibus sem dar uma ajudinha, sabe? Isso me emociona.
    Beijos

  2. Márcia Pinheiro em disse:

    Vivência, querida. beijo.

  3. Aurea Campos em disse:

    Ola´, querida sobrinha!!!!!
    realmente, creio que as pessoas estao ficando muito indiferentes, individualistas, sejam americanos, brasileiros ou outra qualquer nacionalidade. Em alguns pontos deste nosso planeta ainda existem (poucas) pessoas que se preocupam com o seu semelhante individualmente. Existem e´ claro, programas, voluntarios que lutam arduamente pelo outro mas, refiro-me ao corpo a corpo, pessoa a pessoa, esta´ ficando realmente dificil. Temos tido noticias de jovens estudantes que se esmurram, desrespeitam professores, mestres que desrespeitam alunos e por ai´vai. De qualquer maneira, precisamos manter a esperanca no ( ser) que foi criado e dotado de inteligencia.. Que o homem nao se desumanize.
    Beijos, minha querida e fiquem com Deus.

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